Este texto saiu em um artigo dos classificados d´ A Notícia, mas achei-o muito instrutivo e decidi publicá-lo aqui.
Texto: Homero Reis
Foto: Office
A Notícia
Versão Impressa (pode ser encontrada on line aqui)
A fábula é assim: Um homem andava pelo campo quando viu um
Guaxinim arrancando todas as espigas de um trigal. O homem sem entender o que
via, perguntou-lhe o que estava fazendo. – Procuro uma espiga madura para
comer. – Mas, nessa época ainda estão verdes, retrucou o homem. - Não importa,
disse o Guaxinim, se não estão boas agora, não me interessa amadurecerem
depois. - Veja, posso lhe dar algo para comer. Assim, você mata sua fome e não
estraga o trigal. – Eu sou assim e é assim que atuo, sua oferta não me
interessa. Moral: Quem não enxerga os outros e não compartilha a vida, limita o
futuro.
Esopo escreveu essa fábula no inicio do século VIII a.C. em
Delfos. A história narra que Delfos era uma megalópolis, para os padrões da
época. Uma cidade lotada de gente ocupada com seus afazeres, estressada com
tudo e todos. Seus habitantes eram impacientes, mal humorados, ríspidos em suas
relações e pouco afetivos. Parece-me um retrato atualíssimo de nossos dias.
Impressiona-me a lucidez de Esopo ao construir essa fábula naquela época.
Do ponto de vista relacional, a fábula denuncia quatro
“doenças da alma”. Primeiramente, mostra o egoísmo do Guaxinim. Sua procura por
alimento não considerava a possibilidade de que sua atitude viesse a prejudicar
os outros. Isso revela muito sobre nossas relações. Pensamos em nossas demandas
e buscamos satisfazê-las sem nos preocupar com o impacto que isso causará nos
outros. Nossa sociedade perdeu a capacidade de entender que a vida se dá dentro
do espaço relacional. Temos uma visão egoísta das coisas e tratamos tudo a
partir deste domínio. Defendo o meio ambiente, desde que isso não atrapalhe
meus planos; declaro meu amor desde que isso não venha a exigir de mim
sacrifícios ou renúncias; comprometo-me com o trabalho no limite contratual e
nada me mobiliza além do mínimo necessário. Uma pesquisa da Organização
Internacional do Trabalho revelou que os profissionais mais dedicados oferecem
apenas 20% de sua competência ao trabalho. Tenho visto casamentos serem
desfeitos, amizades perdendo o sentido, relacionamentos em geral tornando-se
cada vez mais superficiais, porque perdemos a capacidade de sermos generosos. É
fundamental entender que a generosidade não é apenas um “fazer algo pelo
outro”, mas uma forma de SER nos relacionamentos. É reconhecer que minhas
competências, habilidades e atitudes só fazem sentido se as coloco a serviço
dos outros. Willian Shakespeare dizia que “uma pessoa é única ao estender a
mão, e ao recolhê-la inesperadamente torna-se mais uma. O egoísmo unifica os
insignificantes”, ao que Oscar Wilde complementa dizendo que “egoísmo não é
viver à nossa maneira, mas desejar que os outros vivam como nós queremos”. Aí
está a raiz do egoísmo – não entender que a demanda do outro é tão legítima
quanto a minha e que também sou responsável por atendê-la.
A segunda doença denunciada na fábula do Guaxinim é o
imediatismo. Ele quer algo naquele momento de modo tão compulsivo que não
consegue perceber as alternativas que lhe são propostas. Quando nos tornamos
imediatistas perdemos a capacidade de entender que nossas dificuldades e
incompetências só são superadas pelo desenvolvimento e isso requer tempo. O
imediatismo atropela talentos porque não reconhece que competência é resultado
de tempo, mais dedicação, mais estudo persistente e constante. O resultado é
experiência e maturidade. Quando se dá vazão ao imediatismo transformam-se boas
promessas em possibilidades perdidas. Nove mulheres não conseguem gerar uma
criança em um mês. Crianças levam nove meses para serem geradas, independente
da quantidade de mulheres. Nenhum imediatismo muda esse paradigma. Imediatismo
não tratado produz ansiedade e limita o futuro.
Esopo denuncia, ainda, a terceira doença – a
descartabilidade. O Guaxinim descarta a oferta do homem porque responde como
“todo Guaxinim”. Em nosso tempo, as coisas foram feitas para terem “data de
validade”. Inicialmente aplicado aos bens, produtos e serviços visando garantir
o consumo de coisas em estado saudável, o conceito estendeu-se também para as
relações. Num passado não distante, os produtos eram feitos para durar, quase
que indeterminadamente. No entanto, nenhum sistema econômico sobrevive com
“coisas duráveis”. Precisamos renovar para continuar produzindo, comprando,
gastando, ganhando e perdendo. Tempos velozes requerem satisfações também
velozes (olha aí o imediatismo). No entanto, essa cultura do “use e jogue fora”
entende que comprar outro novo é mais barato e mais fácil. Isso também alcançou
as pessoas. Ninguém mais põe meia-sola em sapato, nem conserta panela.
Compram-se novos. Ninguém mais cuida de consertar relacionamentos. Acaba-se com
um e arranja-se outro porque o tempo é curto e a fila anda. Essa
descartabilidade relacional tem sido feita por motivos cada vez mais fúteis.
Perdemos o compromisso com as declarações de verdade que nos levavam a superar
nossos próprios limites na perspectiva de nos recriar e construir um mundo
melhor. Quando adoto a descartabilidade indiscriminada perco a possibilidade de
corrigir meus próprios defeitos. Certa vez, um cliente meu estava
irritadíssimo. Procurei saber a razão e ele me disse que em um ano havia demitido
três secretárias porque todas eram incompetentes. Perguntei-lhe então qual era
sua parcela de responsabilidade nessa situação. Sua resposta foi assim: “Sou o
chefe e tem muita secretária no mercado. Ou elas fazem do meu jeito ou eu as
descarto”. Lembrou-me da resposta do Guaxinim. Recuperar a sabedoria natural é
ser capaz de aprender com os fatos que ocorrem para integrá-los em nossas
competências. Averróis (1126 – 1198) filósofo e médico mulçulmano da Andaluzia,
dizia que “na natureza nada é supérfulo, nem descartável. A sabedoria consiste
em garantir que tudo tenha sua plena aplicação, começando por nos ensinar
coisas novas”.
Por fim, a subjetividade. A subjetividade é, talvez, a mais
marcante característica da pós-modernidade. Aprendemos que temos o direito de
pensar e agir como quisermos e ignorar tudo mais. O Guaxinim assume que sua
forma de ver a vida e de fazer as coisas é a melhor, a mais verdadeira e a
correta. Não lhe passa pela cabeça que o modo como vê as coisas e atua sobre
elas, revela o estado em que se encontra. Existem formas de agir mais efetivas
e menos efetivas, dependendo da capacidade de cada um de aprender com os
outros. Tudo é subjetivo e relativo, mas a capacidade de se fazer acordos por
consenso, de modo que todos empreendam juntos uma jornada de vida e
aprendizagem, também é parte do sucesso relacional. Pessoas em uma sociedade,
empresa ou família que subjetivam e relativizam tudo podem até viver juntas,
mas jamais se tornam uma comunidade (unidade comum) com os demais. Aqui está o
segredo do sucesso - usar as percepções e potencialidades pessoais para compor
uma identidade coletiva que seja mais efetiva que a soma das partes. Isso é ser
uma comunidade que supera limites, constrói possibilidades e cresce em
afetividade. Fernando Pessoa endossava essa tese quando dizia que “quanto mais
diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos depende da minha
subjetividade”.
Reflitam em paz!
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