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domingo, 27 de janeiro de 2013

O trigo e o guaxinim©



Este texto saiu em um artigo dos classificados d´ A Notícia, mas achei-o muito instrutivo e decidi publicá-lo aqui.

Texto: Homero Reis
Foto: Office
A Notícia
Versão Impressa (pode ser encontrada on line aqui)

A fábula é assim: Um homem andava pelo campo quando viu um Guaxinim arrancando todas as espigas de um trigal. O homem sem entender o que via, perguntou-lhe o que estava fazendo. – Procuro uma espiga madura para comer. – Mas, nessa época ainda estão verdes, retrucou o homem. - Não importa, disse o Guaxinim, se não estão boas agora, não me interessa amadurecerem depois. - Veja, posso lhe dar algo para comer. Assim, você mata sua fome e não estraga o trigal. – Eu sou assim e é assim que atuo, sua oferta não me interessa. Moral: Quem não enxerga os outros e não compartilha a vida, limita o futuro.

Esopo escreveu essa fábula no inicio do século VIII a.C. em Delfos. A história narra que Delfos era uma megalópolis, para os padrões da época. Uma cidade lotada de gente ocupada com seus afazeres, estressada com tudo e todos. Seus habitantes eram impacientes, mal humorados, ríspidos em suas relações e pouco afetivos. Parece-me um retrato atualíssimo de nossos dias. Impressiona-me a lucidez de Esopo ao construir essa fábula naquela época.

Do ponto de vista relacional, a fábula denuncia quatro “doenças da alma”. Primeiramente, mostra o egoísmo do Guaxinim. Sua procura por alimento não considerava a possibilidade de que sua atitude viesse a prejudicar os outros. Isso revela muito sobre nossas relações. Pensamos em nossas demandas e buscamos satisfazê-las sem nos preocupar com o impacto que isso causará nos outros. Nossa sociedade perdeu a capacidade de entender que a vida se dá dentro do espaço relacional. Temos uma visão egoísta das coisas e tratamos tudo a partir deste domínio. Defendo o meio ambiente, desde que isso não atrapalhe meus planos; declaro meu amor desde que isso não venha a exigir de mim sacrifícios ou renúncias; comprometo-me com o trabalho no limite contratual e nada me mobiliza além do mínimo necessário. Uma pesquisa da Organização Internacional do Trabalho revelou que os profissionais mais dedicados oferecem apenas 20% de sua competência ao trabalho. Tenho visto casamentos serem desfeitos, amizades perdendo o sentido, relacionamentos em geral tornando-se cada vez mais superficiais, porque perdemos a capacidade de sermos generosos. É fundamental entender que a generosidade não é apenas um “fazer algo pelo outro”, mas uma forma de SER nos relacionamentos. É reconhecer que minhas competências, habilidades e atitudes só fazem sentido se as coloco a serviço dos outros. Willian Shakespeare dizia que “uma pessoa é única ao estender a mão, e ao recolhê-la inesperadamente torna-se mais uma. O egoísmo unifica os insignificantes”, ao que Oscar Wilde complementa dizendo que “egoísmo não é viver à nossa maneira, mas desejar que os outros vivam como nós queremos”. Aí está a raiz do egoísmo – não entender que a demanda do outro é tão legítima quanto a minha e que também sou responsável por atendê-la.

A segunda doença denunciada na fábula do Guaxinim é o imediatismo. Ele quer algo naquele momento de modo tão compulsivo que não consegue perceber as alternativas que lhe são propostas. Quando nos tornamos imediatistas perdemos a capacidade de entender que nossas dificuldades e incompetências só são superadas pelo desenvolvimento e isso requer tempo. O imediatismo atropela talentos porque não reconhece que competência é resultado de tempo, mais dedicação, mais estudo persistente e constante. O resultado é experiência e maturidade. Quando se dá vazão ao imediatismo transformam-se boas promessas em possibilidades perdidas. Nove mulheres não conseguem gerar uma criança em um mês. Crianças levam nove meses para serem geradas, independente da quantidade de mulheres. Nenhum imediatismo muda esse paradigma. Imediatismo não tratado produz ansiedade e limita o futuro.

Esopo denuncia, ainda, a terceira doença – a descartabilidade. O Guaxinim descarta a oferta do homem porque responde como “todo Guaxinim”. Em nosso tempo, as coisas foram feitas para terem “data de validade”. Inicialmente aplicado aos bens, produtos e serviços visando garantir o consumo de coisas em estado saudável, o conceito estendeu-se também para as relações. Num passado não distante, os produtos eram feitos para durar, quase que indeterminadamente. No entanto, nenhum sistema econômico sobrevive com “coisas duráveis”. Precisamos renovar para continuar produzindo, comprando, gastando, ganhando e perdendo. Tempos velozes requerem satisfações também velozes (olha aí o imediatismo). No entanto, essa cultura do “use e jogue fora” entende que comprar outro novo é mais barato e mais fácil. Isso também alcançou as pessoas. Ninguém mais põe meia-sola em sapato, nem conserta panela. Compram-se novos. Ninguém mais cuida de consertar relacionamentos. Acaba-se com um e arranja-se outro porque o tempo é curto e a fila anda. Essa descartabilidade relacional tem sido feita por motivos cada vez mais fúteis. Perdemos o compromisso com as declarações de verdade que nos levavam a superar nossos próprios limites na perspectiva de nos recriar e construir um mundo melhor. Quando adoto a descartabilidade indiscriminada perco a possibilidade de corrigir meus próprios defeitos. Certa vez, um cliente meu estava irritadíssimo. Procurei saber a razão e ele me disse que em um ano havia demitido três secretárias porque todas eram incompetentes. Perguntei-lhe então qual era sua parcela de responsabilidade nessa situação. Sua resposta foi assim: “Sou o chefe e tem muita secretária no mercado. Ou elas fazem do meu jeito ou eu as descarto”. Lembrou-me da resposta do Guaxinim. Recuperar a sabedoria natural é ser capaz de aprender com os fatos que ocorrem para integrá-los em nossas competências. Averróis (1126 – 1198) filósofo e médico mulçulmano da Andaluzia, dizia que “na natureza nada é supérfulo, nem descartável. A sabedoria consiste em garantir que tudo tenha sua plena aplicação, começando por nos ensinar coisas novas”.

Por fim, a subjetividade. A subjetividade é, talvez, a mais marcante característica da pós-modernidade. Aprendemos que temos o direito de pensar e agir como quisermos e ignorar tudo mais. O Guaxinim assume que sua forma de ver a vida e de fazer as coisas é a melhor, a mais verdadeira e a correta. Não lhe passa pela cabeça que o modo como vê as coisas e atua sobre elas, revela o estado em que se encontra. Existem formas de agir mais efetivas e menos efetivas, dependendo da capacidade de cada um de aprender com os outros. Tudo é subjetivo e relativo, mas a capacidade de se fazer acordos por consenso, de modo que todos empreendam juntos uma jornada de vida e aprendizagem, também é parte do sucesso relacional. Pessoas em uma sociedade, empresa ou família que subjetivam e relativizam tudo podem até viver juntas, mas jamais se tornam uma comunidade (unidade comum) com os demais. Aqui está o segredo do sucesso - usar as percepções e potencialidades pessoais para compor uma identidade coletiva que seja mais efetiva que a soma das partes. Isso é ser uma comunidade que supera limites, constrói possibilidades e cresce em afetividade. Fernando Pessoa endossava essa tese quando dizia que “quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece, porque menos depende da minha subjetividade”.

Reflitam em paz!

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